Um compra e outro opera

Diferentemente do que ocorre hoje, quando o transportador assume a operação e os investimentos em frotas e infraestrutura, o novo modelo de responsabilidades começa a fazer escola em alguns países da América do Sul

Uma nova modalidade de financiamento para as frotas de ônibus urbanos surge no mercado, em harmonia com a operação, porém, separados nos negócios. Essa é uma tendência que pode trazer benefícios e vantagens para o sistema de transporte coletivo das cidades.

Diferentemente do que ocorre hoje, quando o transportador assume a operação e os investimentos em frotas e infraestrutura, o novo modelo de responsabilidades começa a fazer escola em alguns países da América do Sul, visando alcançar desempenho e qualidade. E, nestes tempos tão bicudos vividos pelo setor de transporte coletivo, fatores como a demanda de passageiro em queda contínua, a operação comprometida pela falta de racionalização dos serviços, a rentabilidade em baixa e a falta de atributos positivos ao modal dão o tom no cotidiano do segmento. Buscar medidas alternativas que promovam o novo cenário é tão essencial para a sobrevivência do segmento de mobilidade coletiva. É possível mudar? A revista AutoBus conversou com Cristina Albuquerque, gerente de Mobilidade Urbana do WRI Brasil, instituto de pesquisa que atua nas áreas de Cidades Sustentáveis, Florestas e Clima, a respeito desse assunto.

Revista AutoBus – Como funciona esse fatiamento visando os contratos no transporte urbano, com investimentos separados da operação? Quem pode participar, de que maneira? Como as partes podem ter ganhos com esse modelo?

Cristina Albuquerque – É um modelo que propõe a divisão das responsabilidades e riscos entre diversos atores. Esse modelo pode ser feito de diversas maneiras.

O poder público pode fazer dois processos de licitação, um para a compra e disponibilização dos veículos e outro para a operação do sistema. De maneira geral, para os contratos de operação, os proponentes são empresas que já possuem experiência comprovada em sistemas similares. Para os contratos de fornecimento de veículos, além das empresas com experiência nesse mercado, participam fundos de investimentos ou outras empresas privadas interessadas nesse novo modelo contratual.

Um outro formato possível para esse modelo de separação dos contratos de aquisição de veículos e operação do sistema, é o próprio poder público adquirir os veículos e licitar apenas a operação do sistema.

A gama de benefícios desses novos modelos é interessante. Ao separar as responsabilidades e os riscos, é possível proporcionar mais flexibilidade aos contratos. Essa flexibilidade é atribuída à garantia da dispo­nibilidade de frota no sistema, independentemente da conti­nuidade de um operador espe­cífico. Além disso, é possível verificar uma maior confiabilidade, pois é mais fácil garantir que quem fornece a frota e quem a opera tenham experiência e demonstrem especialização na área que lhes cabe. Além de possibilitar uma possível troca de operadores no sistema que não atingem os níveis de qualidade estabelecidos no contrato com maior facilidade, visto que não pertencem a eles os veículos necessários para a operação.

Esses contratos separados podem também ter durações diferentes (contratos de operação com duração menor que os de fornecimento), em conformidade com o tipo de serviço ofertado, e acabar incentivando a aquisição de tecnologias de ônibus mais limpas e que possuem uma vida útil maior.

Em linhas gerais, quem é responsável pela provisão da frota é remunerado mensalmente de acordo com a frota disponibilizada para operação. Quem faz a operação ganha de acordo com a operação do sistema e a qualidade do serviço prestado.

AutoBus – Para o WRI, essa nova modalidade de contrato para o transporte urbano, com alguns exemplos vistos em Santiago e Bogotá, tende a ter sucesso por aqui?

Cristina – É uma alternativa que pode ser relevante para as cidades brasileiras. No transporte coletivo por ônibus, uma série de componentes e serviços precisam ser fornecidos para a operação do sistema, como por exemplo, garagens, ônibus. Atualmente no Brasil, esses componentes e serviços são, em sua maioria, fornecidos pelas empresas operadoras e, para alguns aspectos, pelo poder público. No momento que ocorre a divisão de responsabilidades e riscos, aumenta-se a viabilidade, eficiência, confiabilidade e flexibilidade do sistema.

Todavia, é importante salientar que não existe o modelo que se encaixe para todas as cidades. O êxito do sistema também passa por entender o contexto local e adequar o modelo à realidade. Na situação atual da maioria das cidades brasileiras, além da adequação dos contratos, é essencial que se pense em medidas de priorização para os ônibus nas nossas cidades e que se encontrem fontes alternativas de receita, para viabilizar a melhoria da qualidade do sistema combinada a uma tarifa acessível, permitindo que o transporte coletivo se torne cada vez mais atrativo.

AutoBus – Na Europa é comum isso?

Cristina – Os sistemas de transporte coletivo na maioria dos países europeus têm a participação de recursos não tarifários na sustentação dos serviços de transporte, especialmente por intermédio de subsídios públicos para melhorar os níveis de qualidade e eficiência do sistema. O que não é tão significativo na realidade da América Latina.

Apesar dessa realidade diferente, lá algumas cidades têm adotado esse novo modelo contratual, especialmente para fomentar a adoção de tecnologias de ônibus mais limpas, como os ônibus elétricos. Cidades como Londres e Perth (Austrália), além de Estocolmo e Singapura, já adotaram essa separação contratual.

AutoBus – É possível o Estado participar, como por exemplo, o poder público adquirindo a frota e contratando terceiros para a operação? Isso seria vantajoso?

Cristina – Sim. A compra dos veículos pode ser feita pelo ente público, por meio de licitação, ou por ente privado, com opção de pagamento à vista ou financiado. A depender da maneira que será estruturada, a compra pelo poder público pode priorizar a aquisição de ônibus elétricos e incentivar a implementação de tecnologias mais limpas.

A aquisição dos veículos pelo poder público, a depender do modelo como será feita, pode resultar em vantagens relacionadas aos impostos associados aos veículos, mas isso precisa ser verificado em cada caso.

AutoBus – Nessa modalidade é preciso um acompanhamento primoroso em termos de qualidade e realização dos serviços?

Cristina – Em geral, todos os contratos, tanto entre entidades públicas e privadas, quanto entre empresas privadas, devem ser monitorados. Esses contratos devem ser detalhados e específicos, para que todos tenham entendimento de suas responsabilidades e para que seja garantida a qualidade do serviço.

Nesses novos modelos, na medida em que se tem uma divisão de riscos e responsabilidades entre atores que já possuem experiência nas suas respectivas áreas, espera-se que a realização dos serviços seja mais eficiente e de melhor qualidade do que nos atuais modelos. Com a possibilidade de prazos de operação mais curtos e licitações mais frequentes, novos entrantes tendem a buscar a redução de custos e a oferta de um serviço de mais qualidade. Esses novos modelos incluem mecanismos de remuneração que levam em conta a qualidade do serviço, incluindo a avaliação dos clientes, podendo inclusive haver desconto direto na remuneração ao operador por descumprimento a obrigações contratuais ou por má qualidade do serviço

Para acompanhamento desses contratos, que passam a ser mais detalhados e envolvem mais atores, a capacidade de gestão por parte do poder público precisa ser levada em consideração no momento da tomada de decisão. Provavelmente, a equipe destinada a acompanhamento dos contratos precise aumentar, para garantir que os benefícios aos sistemas sejam alcançados e cumpridos por todos os envolvidos.

Imagem – Divulgação

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